RICORDANZA
Ela nasceu em 1910, numa antiga casa amarela cercada de flores, com um pomar imenso. Seu pai era médico e sua mãe, do lar. Aos quatro anos, a pequenina Inah revelou seu talento para a música, os dedinhos miúdos correndo pelo teclado do piano que ornava a sala. Seu pai se foi; ela, filha devotada, juntamente com seus irmãos, auxiliava no sustento da família, quando não estava ao piano. Inah cresceu e se casou, vivendo naquela casa enorme, que respirava arte. Depois, sua mãe partiu, assim como seus irmãos, sucessivamente. Restou ela, o marido e o piano. Enquanto Luciano lecionava – era professor – Inah, laureada por seu virtuosismo ao piano, ingressou na Escola de Música, onde ensinava teoria musical. Nas horas vagas, lecionava em casa.
O tempo passou rápido, “tia Inah” cercada por crianças e adolescentes, seus alunos, e quando estava só, o som de seu piano fugia da casa, enchendo a rua e os ares com suas melodias e sua alegria infinda.
Um dia, Luciano se foi. Inah permaneceu solitária e triste. Ela e seu piano companheiro, naquela casa imensa, onde seus alunos amenizavam sua dor. Enquanto seus cabelos prateavam, ela continuava na sua missão de ensinar aos outros sua arte. A rua inteira a conhecia e bebia dela o encanto das sonatas, prelúdios e polonaises que, de suas mão, como uma fuga ganhava a rua e invadia a vizinhança... Inah continuava lecionando, solitária, naquela casa que, agora, respirava saudades e música. Dedilhava seu piano, suas mãos enrugadas, as lágrimas orvalhando seu rosto marcado pelo tempo. Todos que com ela conviveram julgavam-na imortal, antológica... Ela conhecia cada pedacinho da cidade e seus habitantes. Sabia de tudo e todos.
Então um dia, ela também se foi, desavisada, aos 91 anos. Silenciosamente, como uma pausa de infinitos compassos. A casa, também envelhecida, ficou vazia: de risos, saudades e música. As flores murcharam no jardim, a rua empobreceu. Nunca mais “tia Inah” idosa, acenando ao portão; nunca mais as sonatas e prelúdios invadindo sem cerimônia as residências vizinhas, os ouvidos, a alma, de quantos a ouviam tocar. Desde então, aquela casa amarela ficou deserta, como os corações daqueles que a conheceram; e se acostumaram com seus acordes e arpejos soltos ao vento, diariamente, ao longo dos anos. Dela permaneceu apenas saudade e silêncio, uma sonata interrompida, uma partitura vazia...
E eu acreditava fosse ela eterna
Como eterna é a música que ela ensinava
Paciente e dedicada; e o tempo deslizava
Em celestial harmonia, carinhosa e terna...
Seus dedos ágeis, que o teclado não feria,
(Antes com sensibilidade, os acariciava)
Eram asas de um anjo dourado que passeava
Entre arpejos e sons – divina melodia!
Envelhecemos, e o tempo fugidio
No compasso breve de um prelúdio insano
Arrebatou-lhe a vida, a música, o piano...
Vai, tia querida, vai concertar com os anjos!
Vai dançar com Luciano, teu amor idolatrado...
E eu sou só saudade, aluno e amigo dedicado!
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